Cariri e a Escola de Juazeiro
Renato Dantas
“Terra boa é o Cariri,
Dá mangaba e dá piqui,
Tem muita moça bonita
E cabra bom no fuzir.
Mas ao arredar meia légua,
Tem cabra fio de uma égua
Que nega até um piqui. ”
(José de Matos)
Das entranhas da serra mãe, Araripe, brota a seiva da vida, a água. Suas benesses se espalham pelo Vale do Cariri, expandindo-se para toda região dos Cariris Novos, último reduto dos cariris nordestinos, a ser invadido pelo homem branco.
Água e pequi se juntam e formam a floresta. O gentio em outras paragens sonha com a Terra Sem Males, ao sentir o cheiro do pequi e ouvir a sonoridade das fontes é atraído, nela se instala e forma a Nação Cariri.
Partindo da lagoa encantada, centro de um grande reino com terras cheias de ouro e outras riquezas, o povo cariri conta de um encantamento que transformou seu reino em pedras e o povo em plantas. Na espera do desencanto, se relacionava com os espíritos em rituais mágicos, regados a aluás e fumo, ao som de cabaças e flautas de osso. A acauã, o carcará, a coruja, o mocó, a raposa e outros bichos juntos às sagradas árvores da cabaceira, do umbuzeiro e da quixabeira conduziam a vida.
Um negro escravo fugido dos domínios da Casa da Torre, chega à queda d’água formada pelo rio Carité e aproxima-se dos habitantes da terra. De volta ao convívio dos brancos, trai os cariris e mostra aos bandeirantes o oásis.
O paraíso é invadido. Atraídos pelas lendárias minas dos Cariris Novos, portugueses e baianos, depois de outras paragens, fixam-se em Missão Velha. O ouro nunca aparece. Inicia-se o ciclo do gado quase paralelo com o da cana de açúcar.
Os engenhos de rapadura espalham a cana por todo o Vale, originando latifúndios e agregados. O compadrio impera, os feudos dos coronéis se instalam.
Os índios recuam pras entranhas da serra e tapam as fontes. Um dia voltariam e o vale seria inundado pela água do ventre da serra, varrendo o invasor dos seus domínios.
Novamente o gentio seria o dono da terra.
Voltando ao tempo da colonização: Novamente a Cruz de Cristo foi usada para amansar e domesticar o índio. Na Missão de Miranda ou Curato de São Fidelis (o Crato) aconteceu o massacre que resultou na expulsão do que restou das tribos Cariri, Cariús e Jucás para Soure (hoje município de Caucaia), no litoral.
Nossa Senhora do Belo Amo é colocada sobre uma pedra no aldeamento. Outros a querem no alto do morro. Todas as noites ela se muda do serrote para a pedra da ocara, da pedra da ocara para o serrote. O milagre gera a devoção. Nossa senhora do Belo Amor, agora Nossa Senhora da Penha é entronizada e seu pé fica sobre a ytaytera, a Pedra da Batateira, que posta pelos índios, agora sustenta um mar de água. Caso os homens não sejam bons, não cumpram a lei de Deus, ela suspende o pé, a pedra rola, liberta a baleia e o vale é inundado.
Crato, Barbalha, Missão Velha, Jardim e Milagres prosperam nos verdes vales do Cariri. Ganham sobrados e gabinetes de leitura, e no Crato, o Seminário São José é o berço intelectual das novas gerações.
Um padre visionário, Padre Cícero, chega a um pequeno povoado. Assume a missão de orientar a gente do Nordeste sem água e sem terra. Ocorre o milagre da Beata Maria de Araújo, Joaseiro, seu povoado passa a ser difundida como a Nova Jerusalém. O impacto do que ocorre em Joaseiro irradia por todo o Vale do Cariri, provocando a ocupação do território por romeiros dos quatro cantos do Nordeste brasileiro.
Começa o confronto de duas culturas. Uma inspirada na belle époque francesa, o eurocentrismo tupiniquim (abre espaço no Crato), a outra, a mistura secular das contribuições ibéricas, negras e indígenas (se instala na Terra da Mãe de Deus, Joaseiro).
A cultura cabocla ganha impulso na construção da utopia da Nova Jerusalém. O artesanato utilitário se expande. Os repentes dão as cantorias que dão os folhetos que eternizam as estórias. Os poetas espalhados Brasil afora vêem para a Região cantar o Padre Cícero, os milagres, a Cidade Santa, e deságuam na Folheteria São Francisco.
Transformar a fé em escultura de santos para atender aos peregrinos é necessário, fazê-los bonito é arte.
A música é bárbara, no dizer do botânico inglês George Gardner, que saída da banda cabaçal, ou zabumba, ou esquenta muié, peregrina pelas veredas dos campos, ruas das cidades e povoados para tirar esmola para o santo, rezar a Renovação do Sagrado Coração de Jesus e alegrar o povo nos Reisados de Congos, de Caretas, e de Guerreiros.
Os Reisados louvam os santos, a fé, e lutam, como se fossem cruzados, em busca de Jerusalém, contra os mouros. O auto do boi reverencia o animal que com o seu bafo espantou o frio do Menino Deus na manjedoura. O boi santo, revivido na gênese do Boi Mansinho, do Beato José Lourenço.
Os ensinamentos do Frei José Maria Ibiapina – Padre Ibiapina, construtor das Casas de Caridade e cemitérios, de grande influência na religiosidade e moral sertaneja, propagadas por seus Beatos e Beatas, somados às leituras da Bíblia e de livros, como: Missão Abreviada, Horas Marianas, Lunário Perpétuo, Princesa Megalona, As Guerras do Imperador Carlos Magno e os Dozes Pares da França, constituem a enciclopédia da cultura dessa gente que cultiva a experiência das meisinhas e das rezas de cura.
Os afeitos à valentia têm a reza de fechar o corpo, a tora de jucá, o facão rabo-de-galo e a papo amarelo para espantar as visagens, o fogo fátuo, as bestas-feras.
O medievo e a modernidade seguem passo a passo e não se encontram, não se misturam, não se completam. Cada um convive com os seus fazeres em seus lugares. São os tempos da terceira versão da lenda da Pedra da Batateira. “Meu padrinho Ciço dizia que há de chegar um dia que a Pedra da Batateira vai rolar e o Crato vai descer e do patamar da matriz do Juazeiro há de se pescar.” Eis a resposta da cultura de tradição à cultura erudita.
Tempos novos, a contemporaneidade. O Cariri vê com a parabólica que, rivalizando com o pequi, propicia novos frutos, algumas vezes doces, muitas vezes amargos.
A Cultura do Cariri, entendida aqui na sua dimensão antropológica, enquanto conferidora de sentido à vida e a sua inter-relação com as comunidades, agarra, como o vaqueiro pega o novilho derrubando-o, suas raízes e as transforma no viver do hoje, num épico duelo entre o homem e a fera, construindo um novo quadro, um novo passo, uma nova cor, um novo som.
Muitos são os que já fazem a transcendência e dão rumos ao povo do lugar através da transformação da cultura em arte. Mostram caminhos nunca dantes percorridos e indica outro tanto a ser descoberto. O medo e pejo que antes se tinha do universo tradicional, cede lugar à investigação, ao compreender e à (re)significação do fazer de antes, mostrando o agora e profetizando o futuro.
Os frutos brotam. A região é conhecida como um caldeirão de cultura e arte. A multiplicidade do ser, do fazer, do querer, (re)explode em cores antes não notadas e agora, queridas. Os artistas constroem a arte cearense, participando de movimentos como o Massafeira, o Cabaçal, festivais de teatro e música.
Os grupos de tradição mostram aqui e alhures a beleza plástica de nossa dança, nossa música, da teatralidade. A xilogravura, antes capa de cordel, reclames de produtos, transforma-se em arte autônoma. É como se fora uma escola “a Escola de Juazeiro”, apresentando a temática regional recortada na madeira, transportando-a para o papel e ganhando o mundo.
O cordel é tema da Academia, de movimentos e serve de base para a música e principalmente para o teatro onde autores, diretores e atores transportam para o palco a temática, a linguagem, os gestos, criando um fazer teatral próprio da região.
Os benditos revelam o diálogo entre o céu e a terra, a gente e os santos, mostrando ser o elo entre a música antiga e a contemporânea, já em ensaio pelos diversos artistas e grupos musicais.
E assim caminham todas as artes que por aqui brotam com intensidade. Veja-se a profusão do Centro de Cultura Mestre Noza ou as ruas de Juazeiro nas grandes Romarias. A expressividade dessa cultura transposta para a pintura ou a escultura transborda para além de rótulos ou clichês. Em madeira, barro ou metal o nosso ex-voto, por exemplo, é sempre um milagre desta criação.
Renato Dantas
13:07:44