100 ANOS DA XILOGRAVURA NA LITERATURA DE CORDEL

A Xilogravura Nordestina
Jeová Franklin *

 Faremos uma viagem pela gravura popular nordestina de muitos demônios e profetas, fadas, beatos, cangaceiros, moças donzelas, vaqueiros e prostitutas. Até mesmo entre os amores mais puros do mundo.Na aridez inclemente de todas as estações a cena sertaneja se transfigura em campo fértil para outra realidade. Na paisagem marcada por contrastes sociais, os seres sofridos, desprezados e perseguidos encontram nos traços da gravura sua transformação em heróis e hóspedes de um mundo melhor.  Em cenas falsamente ingênuas, como na belíssima  gravura A Chegada da Prostituta no Céu, de José Francisco Borges, o J.Borges, o artista popular de maior renome internacional ; vê-se uma mulher com o gigolô nas costas tentando a chegar a São Pedro. Nela você observa o fazendeiro, a mulher do fazendeiro e o diabo lutando contra a prostituta. É o resumo do Sertão. O sonho sertanejo de superação da realidade.

Desde a metade do século passado, os artistas populares do Nordeste vêm construindo a mais rica e instigante expressão plástica da cultura brasileira, apesar de na maioria dos casos, ser um indivíduo de pouca leitura. Na Europa, na Ásia e na América Latina, gravadores populares tiveram seus momentos de glória mas hoje, não mais existem. No Brasil, somos o único caso no mundo com a força e a dimensão da expressão plástica, como diz Giusepe Baccaro.  Baccaro foi um dos introdutores dos leilões de arte no Brasil e o primeiro marchand a reconhecer a xilogravura nordestina com arte: “Não há lugar por aí que se tenha no planeta a qualidade e variedade da cultura  expressa em gravuras ou nos versos da poesia popular.”Ariano Suassuna confessa que entre a gravura medieval e a xilogravura nordestina sentiu o que nela mais lhe agradava era o real transfigurado pelo poético, o real como mero ponto de partida, o achatamento geral da gravura pela ausência de profundidade, pela falta de claro-escuro e de perspectiva, assim como a predominância do traço limpo, puro e for­te, contornando as figuras. Ele opina que a gravura e a literatura populares nordestinas representam um dos mais autenticamente brasileiros trabalhos de criação.

(Entra gravura de José da Costa Leite?)

O artista xilogravador popular exerce a função tripla de criador, de gravador e de impressor. Ele pega a superfície vazia e com traços precisos mostra seu desespero e esperança. Não se deve considerá-lo um profissional como datilógrafo, mecanógrafo, o simples executor da atividade manual. Ele realiza um trabalho igual ao do escultor diante da matriz de madeira ou outro substituto qualquer. Xilogravador seria um título mais criativo.

No princípio, a xilogravura popular limitava-se à ilustração de cate­goria menor na literatura de cordel. Essa publicação de folhetos de versos, de no máximo oito páginas, impresso em papel barato popularizou-se no tempo da democratização da indústria gráfica no Sertão, por volta da década de 60 e de 70 do século XX. A fotografia não conseguia penetrar no imaginário sertanejo, o mundo que não se deixa apanhar por processos mecânicos de captação da imagem, assim a xilogravura transformou-se no retrato do fantástico.

Vejam os títulos: A Chegada de  Lampião no Inferno, A Moça que Virou Cobra, João Cambadinho,  O Valente Cobra Choca, A Mulher que Botou no Chifre no Diabo, A Velha que Vendia Tabaco e o Matuto que Vendia Fumo. Entre os raros clássicos do cordel, ilustrados por xilogravura, está o campeão absoluto de venda, o Romance do Pavão Misterioso, que já deve ter vendido mais de 6 milhões de exemplares. A Damásio Paulo se atribui a primeira ilustração do clássico folheto, embora o paraibano Álvaro Barbosa, com o pseudônimo de ABA, tenha assinado a versão mais conhecida e mantida, com pequenas mudanças, em sucessivas impressões de diferentes editores.

Na década de 1960, a xilogravura popular ganhou independência e saiu das capas de cordel, mas só nos anos 1970 alcançou espaço para se transformar em arte própria. Conquistou personalidade e se firmou como fenômeno independente do imaginário nordestino, ganhou os lares da classe média brasileira ao ser recebida na Europa como arte antropológica.

Observe que a valorização da fantasia gráfica sertaneja coincidiu com o movimento de transformação das demais manifestações culturais urbanas. No teatro, na música, no cinema e na literatura brasileira, após a construção e inauguração de Brasília.  A Xilogravura passa a aparecer com freqüência em reportagens de jornais e revistas. São editados álbuns especiais, utilizam xilogravuras em capas de discos, de livros, cartaz de filme e até para abertura de telenovela, a nova diversão eletrônica.

A primeira produção em cores da Televisão Brasileira, a versão inicial de Roque Santeiro, da Rede Globo, punha em destaque gravuras talhadas pelo pernambucano J.Borges. Infelizmente, jamais chegou a ser lançada, apesar do alto custo da produção. Nada de preconceito contra a arte popular. A ditadura não tinha gostado do satírico enredo de Dias Gomes.

Era o tempo em que o Brasil saía do litoral e voltava as vistas para o interior à procura de  identidade. A mesma coisa parece estar acontecendo hoje, talvez fruto de um possível desencanto com a identidade de civilização global.

Mas, no início do Século XX , a mais importante expressão pictórica da fantasia nordestina começou timidamente na ilustração da literatura popular em verso, que conhecemos como Literatura de Cordel. A xilogravura não era a ilustração preferida do leitor tradicional, a população rural. Eles preferiam ilustrações mais realistas e detalhadas como a zincogravura e as fotografias. Presa à capa do folheto a xilogravura se projetou e ganhou prestígio. Ao contrário da literatura popular em verso, ela valorizou-se com o explosivo processo de urbanização do Nordeste. Atingiu o apogeu quando o cordel entrava em  franca decadência.

 Nos anos 60, a maior folhetaria do Nordeste , pertencente a José Bernardo, vendia menos de vinte por cento de sua produção recordista, nas décadas de 40 e 50.

O Começo da História

A técnica da xilografia chegou ao Brasil no período colonial na estampagem de flores em tecidos e papéis de parede, na produção de cartas de baralho e na edição de imagens e de textos sacros. Em 1815 ela estreou na literatura, estampando na folha de rosto do livreto Historia Verdadeira da Princesa Magalona, de 44 páginas, lançado pela Impressão Régia, no Rio de Janeiro.

No Recife, em julho de 1822, o periódico O Maribondo, trazia com destaque no cabeçalho a xilogravura  de um português atormentado por enxame do agressivo inseto tropical. Com ironia o título do jornal se aproveitava da alcunha lusa dada aos brasileiros.  Outros exemplos de xilogravura na imprensa nordestina: O Carcundão, em 1831 e O Carapuceiro , no período de 1832 a 1847, no Recife; O Grão Tutu, em 1878, em  de Alagoas;  Cancão, em 1891 no Ceará.

No Rio Grande do Norte, O Mossoroense, um dos três mais antigos em circulação no Brasil, editado quinzenalmente na cidade de Mossoró,  ilustrava notícias e publicidade com gravuras talhadas pelo  diretor e proprietário, João da Escóssia, no período de 1902 até 1919, ano em que faleceu. Câmara Cascudo registra que em Currais Novos, no mesmo estado, outro jornal, O Progresso,  empregavava os tacos de madeira. Em Juazeiro do Norte- Ceará, o Padre Cícero reforçava a atuação política com  o jornal O Combate que também se valia da forma milenar de ilustração. A mesma prática se verificou nos jornais do interior, principalmente em Alagoas, Paraíba, Sergipe e Bahia.

A confecção de clichês em madeira ganhou espaço na confecção de carimbo, na impressão de embalagens e rótulos comerciais de cachaça, vinagre, fogos, doces, sabão e remédios. Sua introdução no folheto artesanal era uma conseqüência naturalmente esperada.

Junto com o folheto

Quase um século depois da estréia em publicação no Brasil,  a xilogravura incorporou-se à nascente literatura popular em verso, depois de os pioneiros editores, Leandro Gomes de Barros e Francisco das Chagas Batista, utilizarem apenas fios e vinhetas na capa de suas primeiras narrativas em verso. 

Em 1907, Chagas Batista apresentou em página interna do folheto  Antonio Silvino, o rei dos cangaceiros - a xilogravura de um homem bem vestido e de chapéu de couro. A estampa apresentava-se como calcada na imagem real do célebre personagem, talvez em alguma fotografia posada. A mesma gravura seria reaproveitada na década seguinte na capa de Antonio Silvino o Rei dos Cangaceiros editado por Leandro.

A imagem xilográfica do cangaceiro voltaria a outros folhetos de Batista, com alterações em cada nova de edição. A história de Antonio Silvino; novos crimes, editado em 1908, utilizava-a com uma ranhura horizontal considerável e esmaecimento de traços. A perda de nitidez se acentuou nos folhetos seguintes editados na Paraíba. Em  Novas empresas de Antonio Silvino a estampa  perdeu praticamente todos os traços secundários. Por último ela reapareceu reduzida a um esboço da original, no cordel que trata de um novo cangaceiro, o sucessor de Antonio Silvino. Título do folheto: a História de Lampeão.

Enquanto Chagas Batista se fixava na mesma e desgastada gravura, Leandro ilustrava suas publicações com gravuras importadas. Em 1911, no folheto As Saias Calções – um susto de minha sogra,  usou a imagem xilográfica de uma elegante mulher, possivelmente parisiense. Em Como Antonio Silvino fez o diabo chocar, apresentou, em 1913, outra estampa de traços sofisticados de homem com chapéu de mosqueteiro, espadachim e meia calça amarrada no joelho. Nada a ver com a indumentária nordestina.

Idas e Vindas

Em 1922, o poeta e editor João Martins de Athayde adquiriu todos os títulos deixados por Leandro Gomes de Barros, o primeiro poeta popular a viver exclusivamente da poesia e possivelmente o primeiro editor de folhetos proprietário de gráfica. O endereço da Typografia Perseverança que imprimiu  Antonio Silvino o rei dos cangaceiros, em Recife, é o mesmoindicadocomo ponto de venda na capa de folhetos editados por Leandro.

Com o grande acervo do maior poeta popular brasileiro paraibano, Athayde montou e dirigiu até o final dos anos 40 a maior editora dos folhetos nordestinos. Ignorou a xilogravura. Em 1949, teve que vender a folhetaria e todo acervo de títulos, inclusive os de Leandro, para o poeta alagoano José Bernardo da Silva, de Juazeiro do Norte, Ceará. José Bernardo também tinha gráfica própria, a Tipografia São Francisco, montada em 1926 com permissão e bênção do Padre Cícero. Quando negociou com Athayde ele já se impunha como o maior distribuidor de folhetos no interior do Nordeste. Assumiu também a posição de o maior editor de literatura popular do Brasil. Nos anos 50 chegou a imprimir mensalmente meio milhão de exemplares.

Nas mãos de José Bernardo, em Juazeiro do Norte, a folhetaria mudou de postura com relação à xilogravura, em parte forçada pelas dificuldades de conseguir clichês metálicos no interior do Ceará. O poeta e gravador Expedito Sebastião relatou que antes da chegada de Bernardo, em 1926, a gravura em madeira já aparecia nas ilustrações encomendadas por  João Mendes de Oliveira e outros poetas para os folhetos impressos na gráfica da Diocese do Crato. Exemplo imitado por José Bernardo, antes de instalar sua tipografia com uma impressora barulhenta apelidada de quebra-pedra.

Vários artesãos ganharam destaque na confecção de matrizes xilográficas. O historiador Geová Sobreira aponta João Pereira da Silva, Manoel Santeiro, Antônio Relojoeiro, José Imaginário e o escultor Inocêncio da Costa Nick, o Mestre Noza. Com o crescimento da folhetaria, as encomendas se estenderam ao carpinteiro do Crato, Walderedo Gonçalves, especialista em carimbos e clichês de madeira para rótulos comerciais.

Revolução Gráfica

A interiorização da antiga gráfica e editora de João Martins de Athayde forçou um recuo tecnológico, o retorno ao clichê de madeira. O passo atrás significou a abertura de mercado para o gravador popular. Mais importante que isso, incentivou a proliferação das gráficas de fundo de quintal enquanto algumas cidades já tinham oficinas para produzir impressoras em ferro fundido.

Os autores populares aderiram às pequenas editoras ou montaram suas próprias tipografias ao vislumbrarem no rudimentar processo de ilustração o modo simples e barato de editar folhetos. Não dependiam mais dos caros clichês metálicos confeccionados nas capitais. Os próprios poetas poderiam criar e gravar a pequena ilustração em taco de madeira. José Soares da Silva, o Dila de Caruaru, começou a preparar xilogravuras para si e para os poetas independentes. Depois confeccionou “clichês”, em madeira; assim como João José, em Recife.

Com a ilustração garantida, bastava boa idéia para os versos ganharem o mundo. Boas idéias nunca faltaram na mítica e mitológica cultura rural nordestina. Antes, o poeta tinha de vender os originais à folhetaria ou, na maioria das vezes, trocá-lo por cota de exemplares da primeira edição. A divulgação da xilogravura se limitava a Paraíba, Pernambuco e Ceará. Com a democratização da produção espalhou-se por todo o Nordeste provocando uma revolução gráfica no sertão. Por toda parte surgiram novos poetas, xilógrafos e editores. Causa e efeito se confundiram. Reduzida a dependência ao clichê metálico, a resistência da população rural à xilogravura perdeu  força.
Aceitação restrita

A xilogravura enfrentava resistência  do público tradicional do folheto popular.A imagem tosca na capa dos livretos importantes sofria rejeição. Era comum o comentário maldoso:  fulano é feio como capa de cordel.

As folhetarias restringiam a xilografia aos livretos de no máximo 16 páginas, o que representava a maioria das produções independentes, denominados genericamente de folhetos. As publicações de maior porte recebiam o nome de romance.

O poeta e editor Manoel Caboclo da Silva, de Juazeiro do Norte, em depoimento a Liedo Maranhão, remarcava que a zincogravura “...é uma coisa que ajuda o povo de menor cultura porque apresenta a figura nítida e perfeita de um artista (de cinema). E o clichê de madeira representa a inteligência. Eu não desprezo nem um nem outro. Um é para o matuto e o outro é para o intelectual.” .
Expedito Sebastião contou em entrevista à Revista Interior, em 1981, que depois de temporada em Brasília, o artista plástico Stênio Diniz, neto de José Bernardo da Silva, substituiu clichês metálicos por xilogravuras nos clássicos da folhetaria. A experiência durou pouco. O maior cliente da Gráfica São Francisco, Edson Pinto da Silva, o distribuidor de folhetos instalado no Mercado São José de Recife, mandou um recado curto e grosso: “Acabem com a brincadeira. Os leitores de Cordel não querem saber de princesas de traços rudes”.

O Despertar

Alguns intelectuais nordestinos começaram a se interessar pelas rudes imagens dos folhetos populares na década de 50. Em 1953 o Departamento de Documentação e Cultura da Prefeitura do Recife publicou álbum com capas de cordel editado por Abelardo Rodrigues e Aluísio Magalhães. Dois anos depois os pernambucanos enviaram cópias das gravuras para exposição em museu de Etnografia na Suíça.

Na passagem dos anos 50 para 60, o interesse se ampliou e ganhou detalhes dramáticos numa surda disputa entre Pernambuco e Ceará em torno dos tacos, matrizes de madeiras, em poder das folhetarias. Os cearenses ganharam a disputa. Livio Xavier, assessor do reitor, convenceu a Universidade Federal do Ceará a adquirir os pequenos pedaços de madeira gravados para o acervo do museu de arte que a instituição de ensino pretendia instalar.

Lívio e o pintor Floriano Teixeira foram a Juazeiro do Norte à procura das matrizes da Tipografia São Francisco, de José Bernardo. De lá trouxeram uma camioneta de tacos. Cerca de 500, calcula Lívio. A excursão aquisitiva prosseguiu. Compraram matrizes da Estrela da Poesia de Manoel Camilo dos Santos, na Paraíba e na Luzeiro do Norte de propriedade de João José da Silva no bairro de São José, no Recife. Eles viam como inimigo o colecionador Abelardo Rodrigues que já tinha interesse na aquisição.

O cuidado acadêmico iniciado pelos cearenses trouxe repercussão. A Faculdade de Filosofia do Crato editou, em 1960, álbum com gravuras de Walderedo Gonçalves e a tipografia Luzeiro do Norte, do poeta popular João José da Silva, lançou no Recife, em 1962,  a Utopia Sertaneja - Gravadores Populares Nordestinos, com 40 ilustrações  e Gravuras Populares Nordestinas – II  Estampas nordestinas. Na mesma época, a editora Galvão lançou no Rio de Janeiro Gravuras, organizado por Orígenes Lessa e M. Cavalcanti Proença.

Primeiro, a Europa

Com a vinda em 1961 do gravador Sérvulo Esmeraldo de Paris para uma temporada no Crato, no Ceará, a Universidade do Ceará encomendou trabalhos a Mestre Noza e Walderedo Gonçalves em tamanho superior as capas de cordel. A xilogravura principiava a ganhar ares de arte independente da poesia popular. Contou ele:

“Procurei o Mestre Noza para fazer umas gravuras. Mostrei a ele um exemplar de Oraison Populaire Bretagne. Component de la Passon on dire pendant la semaine sainte  –  Oraisson Populaire Bretagne du XVI siécle, de 5 páginas. Queria-as em formato diferente . Ele me fez uma Via Sacra em pranchas quadradas medindo 19 por 21,5 centímetros.