ARTESÃOS NOSSO DE CADA DIA

Vozes de seus artesãos

Certas vezes é preciso mesmo olhar para o próprio umbigo, a fim de não esquecermos o que somos, de onde viemos, quiçá para onde vamos. E entre as várias linguagens possíveis, as artes visuais desempenham com louvor a tarefa de fazer emergir a história e a alma de um povo. Nesse contexto, o livro “Espelho do Brasil - A arte Popular vista por seus criadores”, da jornalista Daniela Name em parceria com a fotógrafa Selmy Yassuda, revela-se um trabalho bastante oportuno, registro sensível que evidencia parte do enorme universo do tradicional artesanato brasileiro.
A idéia é, em vez de se restringir à apreciação das peças, dar voz aos artesãos, ao enfatizar seus relatos, histórias de vida e observações sobre o mundo - narrativas que podem contextualizar os trabalhos tanto ou mais do que a análise de especialistas.  Assim, testemunhos sobre o cotidiano, sobre a cultura local e a trajetória no ofício somam-se para esboçar, por meio das obras imagéticas, a identida

de daquelas comunidades, suas memórias e construções simbólicas.
Ricamente ilustrado, com capa dura e aspecto rústico - tal qual a arte que se propõe a falar -o livro é ainda traduzido para o inglês. Para dar conta do assunto foi preciso fazer um recorte geográfico e temático. Assim, as autoras optaram pela escultura e por localidades onde o trabalho artesão atingisse, de alguma maneira, toda a população. “Escolhemos a escultura pelo fato de ser uma das técnicas mais utilizadas pelos artesãos, adotada pelo Mestre Vitalino, um dos primeiros artistas populares do país”, explica Name.

Em relação aos locais, o critério foi identificar núcleos iconográficos, como as noivas do Jequitinhonha. “Era importante ter nomes relevantes e pessoas na ativa, com boa produção. Tentamos ser o mais abrangente possível dentro das possibilidades. As regiões Sul e Norte não aparecem, mas há dois Estados do Nordeste, duas do Sudeste e uma do Centro-Oeste, então acho que ficou representativo o sufuciente”, esclarece.

No roteiro, o Ceará foi a primeira parada. Mais especificamente a cidade de Juazeiro do Norte, ao sul do Estado - lar de alguns dos escultores mais importantes do país. Em destaque, a força da religiosidade e de elementos da cultura popular na arte local, a exemplo de santos, do cangaço, do Reisado, do Bumba-meu-boi e das festas juninas.

Foi nesse cenário que as autoras encontram, por exemplo, Manuel Graciano Ferreira. Com mais de 80 anos, Mestre Graciano ainda passa 12 horas por dia na lida com a madeira - imburana, cedro, camaru, todas transformadas em totens de personagens fantásticos e religiosos. O artesão conta com a ajuda do filho e da esposa, em um cotidiano que traduz um pouco da forma de organização social da arte popular no Brasil (na qual segredos de produção são passados de pai para filho e as atividades envolvem toda a família). De Juazeiro as autoras seguiram para Caruaru (PE), Taubaté (SP), Pirenópolis (GO) e terminaram no Vale do Jequitinhonha (MG).

No fim, além das histórias acumuladas, a percepção de que o brasileiro conhece pouco da sua própria arte. “O Brasil se recusa a se olhar no espelho. Por isso gostamos tanto do nome do livro, pois cada peça refletia as comunidades. A arte popular mostra muito do que somos, mas tende a não ser apreciada devido a uma certa ‘precariedade’, uma estética que remete à gambiarra, à miséria, quando esse é justamente o lado bom, que mostra a criatividade, a capacidade de superar adversidades”, opina Name.

FIQUE POR DENTRO
Vitalino Pereira dos Santos (Ribeira dos Campos, Caruaru/PE 1909 - Alto do Moura, Caruaru 1963) foi ceramista popular e músico. Filho de lavradores, ainda criança começou a modelar pequenos animais com as sobras do barro usado pela mãe na produção de utensílios domésticos, vendidos na feira de Caruaru. Seu trabalho permanece desconhecido do grande público até 1947, quando o desenhista e educador Augusto Rodrigues (1913 - 1993) organiza no Rio de Janeiro a 1ª Exposição de Cerâmica Pernambucana, com diversas obras suas. Segue-se uma série de eventos, reportagens e exposições que contribuem para torná-lo conhecido nacionalmente, inclusive uma mostra coletiva na Suíça. Em 1971, é inaugurada no Alto do Moura, local onde o artista residiu, a Casa Museu Mestre Vitalino. Lá estão expostas suas principais obras, além de objetos pessoais e ferramentas de trabalho.

LIVRO
"Espelho do Brasil - a arte popular vista por seus criadores"
Daniela Name e Selmy Yassuda
R$ 82,00
159 páginas
2008
CASA DA PALAVRA

PROCESSO

Começo
A idéia de fazer o livro surgiu a partir de um encontro entre as duas autoras. Como repórter de cultura voltada para artes visuais, Daniela Name comentou com Selmy Yassuda, que havia sido sua colega no jornal O Globo, seu desejo de fazer um livro sobre arte popular, pois era um assunto que ainda não tinha muito registro. Selmy adorou a idéia e tudo aconteceu a partir daí. As duas decidiram que teriam que ouvir muito mais do que falar, pois o interessante seria dar voz a àqueles que criam as peças. Mestre Vitalino, por exemplo, pensou muito sobre a própria obra (em 2009 comemoram-se os 100 anos de seu nascimento). Sete anos depois do encontro conseguiram patrocínio. Caíram na estrada, voltaram e escreveram tudo em menos de um ano.

Recorte Name confessa que foi difícil fazer o recorte do tema. Foi preciso deixar coisas maravilhosas de fora. Além da relevância dos nomes, as autoras levaram em conta a existência de núcleos iconográficos. Name gosto muito, por exemplo, do trabalho de Laurentino, um artesão do Paraná. Mas ele trabalha sozinho, não há uma comunidade em torno daquela atividade.

Núcleos para Name, a arte popular está para o campo visual assim como as lendas antigas estão para o campo da oralidade.  Quer dizer, um núcleo repete determinadas figuras pelo mesmo motivo que uma comunidade repete histórias. De alguma maneira esses elementos significam para o artista coletivamente. E ao passo que são as mesmas figuras, também são diferentes, pois cada geração acrescenta uma nova camada ao trabalho.

Comoção Houve uma história em particular que comoveu a jornalista. Trata-se das irmãs Maria Luiza e Cândida dos Santos, de Taubaté. Juntamente com Edith, a outra irmã já falecida, elas foram pioneiras da modelagem do pavão, transformando-o em símbolo oficial do artesanato paulista Cândida comentou com Name que, quando criança, achava o que o pavão de cauda levantada era macho e o de cauda abaixada, fêmea. Ocorre que essas mulheres moram no Vale do Paraíba, região que por muito tempo foi escravocrata e sem participação das mulheres. Então Cândida falou à autora que a figura do pavão era sua maneira de enxergar o mundo. ´Acho que essa é a síntese do livro´, opina.

ADRIANA MARTINS
Repórter

Quem foi Mestre Vitalino